Há controvérsias em torno dos Benefícios Assistenciais que merecem ser analisadas, perincipalmente pelos legisladores e operadores do Direito, que precisam tratar com atenção especial o assunto, pois, quando se trata de Assistência Social, se está tratando de Direito Fundamental Social e dignidade da pessoa humana.
A Assistência Social, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, formam o tripé da Seguridade Social. Em sendo assim, há que se considerar que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) é responsável por tirar milhões de pessoas da miséria, as quais, sem necessidade de contribuição ao INSS, passam a receber 1 (um) salário mínimo mensal enquanto viverem, desde que preenchidos alguns requisitos: idade igual ou superior a 65 anos, renda per capita familiar de até ¼ de um salário mínimo e que não possuam meios de suprir a própria subsistência.
O
direito está insculpido na Constituição Federal, no seu artigo 203, inciso V, que
afirma: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivo a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à
pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme
dispuser a lei”.
A
Lei Orgânica de Assistência Social 8.742/93 (LOAS) estabelece a garantia desse
benefício, em consonância com a Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), o qual é
concedido e administrado pelo INSS, e tem a finalidade de amparar a pessoa
portadora de deficiência ou idosa que demonstre hipossuficiência econômica, de
modo que não possa prover a sua subsistência ou tê-la provida pelo núcleo
familiar, como se infere da norma constitucional, que prescreve que “a
assistência social será prestada a quem dela necessitar”, sem fazer qualquer
discriminação.
A
questão que se posta vem de encontro ao art. 1º da LOAS, o qual afirma que a
assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, e, como tal, só
abarca os nacionais, no entender de alguns, tendo em vista que o conceito de
cidadão está intimamente ligado à nação. E, sob este prisma, o estrangeiro não
teria direito ao amparo assistencial por não ser cidadão. E mais: os defensores
desse argumento, com base no artigo 7º do Decreto 6.214/07, que afirma que “O brasileiro naturalizado, domiciliado no
Brasil, idoso ou com deficiência (...) é também beneficiário do Benefício de
Prestação Continuada”, entendem que o estrangeiro não teria direito, por
não ser naturalizado.
Por
outro lado, observa-se que o dispositivo constitucional não faz restrição
quanto à pessoa que será assistida, ao afirmar que “será prestada a quem dela
necessitar”, o que faz entender que o Benefício de Prestação Continuada
pode ser deferido também para o estrangeiro residente no país, sob pena de se
estar ferindo a Constituição, que é a lei maior na hierarquia de leis. E, ainda, há que se considerar que a
Assistência Social é Direito Fundamental Social que é devido a todos, sejam
brasileiros ou estrangeiros aqui residentes, sendo também meio para se alcançar
os mínimos existenciais para a concretização da dignidade da pessoa humana.
Os estrangeiros que já estão
naturalizados brasileiros têm o direito ao benefício, mas há muitos idosos
estrangeiros que, embora se enquadrem na maioria das exigências legais para o
processo de naturalização, vivem hoje no Brasil sem poder contar o BPC,
conforme constatação do deputado federal Carlinhos Almeida, de São Paulo, que,
diante disso, apresentou o Projeto de Lei 1.438/2011, em 25.05.2011, na Câmara
dos Deputados, alterando a redação do art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro
de 1993, com o objetivo de estender o direito ao benefício de prestação
continuada aos estrangeiros idosos, que se enquadrem na maioria das exigências
legais para o processo de naturalização, mas que não tenham formalmente a
cidadania brasileira, que aqui residam há mais de quatro anos, que tenham pelo
menos 65 anos de idade e não tenham condições econômicas de se manter.
O
Judiciário tem dado relevância ao assunto, pois é questão não só de Direito
Previdenciário, como também envolve Direito Internacional e Direito
Constitucional, e tem se posicionado a favor da concessão do benefício
assistencial ao estrangeiro aqui residente e necessitado, quer por idade ou por
moléstia incapacitante ao trabalho. Nesse sentido, trago à colação recente
decisão judicial no PROCESSO nº
0507062-90.2009.4.05.8100, que envolve um estrangeiro africano, MAMA SELO DJALO, o qual pediu um
benefício assistencial e que foi negado pelo INSS em razão de ele não ser
brasileiro. Com brilhante exposição, o juiz federal de Fortaleza, George
Marmelstein assim pronunciou seu voto, que pode ser considerado uma
verdadeira aula de democracia e humanismo:
“Mama Selo Djalo nasceu em Guiné-Bissau,
que, assim como o Brasil, também foi colônia de Portugal. O Brasil, contudo,
teve a sorte de conquistar a independência desde 1822. Guiné-Bissau, por outro
lado, só conquistou a independência em 1974 e, desde então, vive mergulhado em
crises internas, guerras civis, golpes de estado e diversos problemas sociais
sérios, típicos de diversos países que obtiveram uma descolonização tardia.
Guiné-Bissau está entre os vinte países do mundo que possuem os piores Índices
de Desenvolvimento Humano, ocupando a 173ª posição do raking do PNUD –
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Em 2001, em virtude dos
problemas vividos em seu país, Mama
Djalo resolveu sacrificar sua vida familiar, seu trabalho local, seus
amigos, sua cultura e, apesar de todos os riscos, incertezas e custos, largou
tudo em sua terra natal para tentar construir uma vida melhor no Brasil. Aportou aqui como turista e resolveu ficar
de vez. Fixou residência, fez amigos e se integrou na comunidade. Já vive aqui
por quase dez anos. Em 2005, Mama Djalo contraiu uma doença renal crônica
terminal (anexo 24). Seu fim seria a morte rápida, se não recebesse o
tratamento adequado. Conseguiu ser inserido no sistema público de saúde
brasileiro e está recebendo o tratamento na Santa Casa de Misericórdia. No
mesmo período, quase foi deportado, pois não possuía visto de permanência e o
seu visto de turismo já havia expirado (anexo 7). Graças à sensibilidade de um
juiz federal, Dr. Alcides Saldanha, conseguiu garantir a sua permanência no
país, por força de ordem judicial, até o fim do seu tratamento médico. Na
referida sentença, o juiz federal consignou que: “a permanência do
estrangeiro no território nacional revela-se como um dos únicos meios
disponíveis, senão o único, para se garantir a continuidade do tratamento
médico, mormente quanto ao fato de que o país de origem do autor (Guiné-Bissau)
sabidamente não possui estrutura médico-hospitalar adequada para o combate à
moléstia que o acomete (insuficiência renal crônica terminal por nefroesclerose
hipertensiva)” (Proc. 2009.81.00.000642-6 – 10ª Vara/CE). Mama Djalo,
antes da doença, vivia de bicos, pedia esmolas, vendia bebidas na noite boêmia
de Fortaleza. Ganhava o suficiente para pagar o aluguel. Depois da doença, sua
situação laboral mudou drasticamente, pois, agora, precisa passar boa parte de
sua vida fazendo hemodiálise, a qual tem que se submeter durante três vezes na
semana. Seu estado de saúde está cada vez pior, já que a doença é progressiva e
irreversível. Mama Djalo não tem como
trabalhar, pois está muito debilitado fisicamente. Vive da ajuda de amigos. O
aluguel já está atrasado há vários meses (anexo 14). No desespero, procurou a
Defensoria Pública da União que ingressou com a presente ação, no intuito de
receber o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo mensal,
previsto no artigo 203, inc. V, da Constituição Federal brasileira: “A
assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: V – a garantia de um
salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso
que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la
provida por sua família, conforme dispuser a lei”. Partindo do
pressuposto de que restou devidamente comprovado nos autos que Mama Djalo é
portador de uma doença grave que o incapacita para o trabalho, impedindo-o de
prover à própria manutenção, resta saber se faz jus ao benefício assistencial.
A questão não é simples, pois ele não é brasileiro e, a rigor, mesmo que
fosse saudável, sequer poderia trabalhar em nosso país já que não possui
formalmente o visto de trabalho. A
juíza federal Cíntia Brunetta, que costuma ser muito criteriosa na concessão de
benefícios assistenciais, julgou o pedido procedente, fundamentando a sentença
em diversos precedentes que garantem ao estrangeiro o direito ao benefício
assistencial (anexo 27). O INSS recorreu, alegando que, por não ser brasileiro
nato ou naturalizado, Mama Djalo não teria direito ao benefício. O Dr.
Vidal, juiz desta Turma Recursal, após estudar a matéria cuidadosamente,
apresentou seu voto acolhendo a tese do INSS, alegando que Mama era um
imigrante ilegal que deveria ser deportado; logo, não deveria receber o
benefício assistencial. Vidal ainda apresentou várias teses a respeito do
benefício assistencial para estrangeiros, mas nenhuma seria útil ao autor da
presente ação, pois ele não estaria em situação regular no Brasil. Para o Dr.
Vidal, seria incoerente reconhecer a ilegalidade de sua permanência no Brasil
e, ao mesmo tempo, concedê-lo um benefício de prestação continuada. É lógico que há um forte apelo pragmático em
favor dos argumentos apresentados pelo Dr. Vidal. Mama Djalo é um imigrante
que, no momento, só gera ônus ao Brasil. Nenhum país do mundo seria tão
generoso ao ponto de conceder para seus imigrantes ilegais um benefício
financeiro mensal. Qualquer país que adotasse tal política certamente seria
invadido por imigrantes necessitados. O Brasil não tem dinheiro para servir
como fonte assistencial do mundo. Não poderíamos encarar o problema dos outros
como se fosse um problema nosso. Há vários brasileiros em situação semelhante
ou pior e não recebem qualquer tipo de ajuda estatal, e assim por diante.
Enfim, os argumentos desenvolvidos pelo Dr. Vidal para negar o direito ao
benefício são muito fortes. Esses argumentos, de fato, seriam preponderantes se
não fosse um detalhe que muda tudo:
nossa Constituição nos obriga a não discriminar qualquer pessoa por conta de
sua nacionalidade ou origem ou cor da pele ou condição social ou qualquer outro
motivo (artigo 3º, inc. IV). Vigora, no Brasil, o princípio da equiparação de
direitos e deveres entre nacionais e estrangeiros, com as exceções previstas na
própria Constituição e na lei. Portanto, do ponto de vista constitucional, Mama
Djalo não pode ser discriminado arbitrariamente. À luz do nosso ordenamento
jurídico, não interessa se Mama Djalo é africano, brasileiro ou europeu: é um
ser humano e como tal deve ser tratado. Talvez as palavras acima possam
ser consideradas demasiadamente utópicas, exageradas ou fora da realidade. De
fato, nossa Constituição não é tão taxativa assim, nem tão “cega quanto à
nacionalidade”. Ela própria faz inúmeras discriminações para beneficiar os brasileiros.
De início, estabelece que os direitos
previstos no artigo 5º só são garantidos “aos brasileiros e estrangeiros
residentes no Brasil”, não contemplando expressamente os seres humanos
que não são residentes no Brasil. Mas esse não é o caso de Mama Djalo, que reside no Brasil há dez anos. Mama Djalo,
portanto, deve ser considerado como um estrangeiro residente no país,
sobretudo porque existe uma decisão judicial em seu favor garantindo a sua
permanência no país. A situação atual de Mama Djalo não é de imigrante ilegal:
ele está autorizado, por força de uma sentença judicial, a permanecer no país
enquanto durar o tratamento médico. Some-se a isso o fato de que Guiné-Bissau,
assim como o Brasil, faz parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP,
que possuem um acordo específico sobre a concessão de visto temporário para
tratamento médico, inclusive quando o cidadão da CPLP contraiu a doença após a
entrada no país de destino (arts. 3º e 4º). Ressalte-se que os países membros
da CPLP estão cada vez mais engajados na busca de uma integração maior entre os
seus povos. Isso inclui uma série de medidas para facilitar a migração e a
livre circulação no espaço da CPLP, bem como a concessão de direitos aos cidadãos
da CPLP. O fato de Mama Djalo ser estrangeiro residente no Brasil não significa
dizer que ele tem todos os direitos garantidos aos brasileiros. Ele não pode,
por exemplo, votar ou ser votado, nem ocupar determinados cargos públicos, nem
exercer determinados direitos que são garantidos apenas aos brasileiros natos
ou naturalizados. Apesar disso, como
princípio geral, o estrangeiro residente não poderá ser discriminado, exceto se
houver uma justificativa constitucional ou mesmo legal para tanto.
Poderiam ser citadas algumas justificativas para se negar o direito ao
benefício assistencial para estrangeiros residentes, já que esse direito tem
uma natureza prestacional que gera custos e é financiado por brasileiros. O
próprio Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC) talvez contenha um dispositivo que poderia ser
utilizado contra o direito de Mama Djalo. Ao mesmo tempo em que proíbe qualquer
tipo de discriminação por motivo de origem nacional, o Pacto prevê que “os
países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos
humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida
garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que
não sejam seus nacionais” (artigo 2º, item II). Com base nesse dispositivo
do PIDESC, o Brasil poderia, sem dúvida, negar o direito ao recebimento do
benefício assistencial aos “que não sejam seus nacionais”. O Brasil é um país
em desenvolvimento e certamente não teria condições de acabar com a miséria do
mundo. Estamos, portanto, inseridos na exceção que o próprio PIDESC
estabeleceu. Não estaríamos descumprindo qualquer compromisso perante a
comunidade internacional se discriminássemos os “não nacionais” em relação aos
direitos de natureza prestacional. Porém,
nosso sistema assistencial não adotou expressamente esse entendimento, pois, em
nenhum momento, excluiu os estrangeiros residentes de sua abrangência.
Existe um princípio básico na interpretação de tratados de direitos humanos: os
tratados não podem ser invocados para piorar ainda mais a proteção
institucional dos direitos. Logo, o PIDESC não pode ser invocado na presente
hipótese, especialmente porque expressamente estabelece que: “não se admitirá qualquer restrição
ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em
qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o
pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau”
(artigo 5º, item 2). Nossa Constituição estabelece que o benefício assistencial
é devido “a quem dela necessitar” (art. 203), não fazendo, em princípio,
qualquer discriminação por conta de nacionalidade. A própria Lei Orgânica da
Assistência Social determina que o benefício será devido “à pessoa
portadora de deficiência” (art. 20). Pessoa, até onde sei, não é só o
brasileiro, mas qualquer ser humano (artigo 1º, do Pacto
de San José da Costa Rica). Se Mama Djalo é estrangeiro que reside
no país e se não há uma norma expressa que o exclua do rol de beneficiários dos
direitos assistenciais, o INSS não está autorizado a discriminá-lo na esfera
administrativa por falta de suporte jurídico para tanto. É certo que o
artigo 1º, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), diz que a assistência
social é “direito do cidadão e dever do Estado…”. A
redação do referido artigo, segundo o INSS, indicaria que apenas os cidadãos
brasileiros teriam direito ao benefício. É fácil refutar essa idéia. Em
primeiro lugar, o INSS concede o benefício para menores de idade ou mesmo para
portadores de graves deficiências mentais, que, a rigor, não são cidadãos no
sentido técnico do termo. Além disso, é bastante claro que o texto não trata
dos requisitos para a concessão dos benefícios, mas apenas adota uma linguagem
retórica para dizer que todos têm o direito à assistência social. A cidadania não pode ser requisito
para a concessão do benefício, até porque a própria Constituição não afirmou
isso. Se apenas os cidadãos (i.e. os eleitores) pudessem receber benefício
assistencial, tal restrição seria claramente inconstitucional. Caso se entenda
que o conceito de cidadania adotado no artigo 1º da LOAS é uma cidadania no sentido
social e cultural, então não vejo porque excluir Mama Djalo da sua esfera de
proteção, uma vez que ele já se integrou à sociedade brasileira. Mama Djalo há
muito tempo já preencheu os requisitos para obtenção da nacionalidade
brasileira. A CF/88 possui uma norma específica que visa facilitar a
aquisição naturalização por parte daquelas pessoas que são originárias de
países de língua portuguesa. O artigo 12, inc. II, “a”, estabelece que, para a
aquisição da nacionalidade brasileira, “aos originários de países de língua
portuguesa” deve ser exigida “apenas residência por um ano ininterrupto e
idoneidade moral”. Há pelo menos oito anos, Mama Djalo já preencheu os
requisitos para poder pedir a sua naturalização. Talvez não tenha pedido por
desconhecimento de seus direitos. É
lógico, contudo, que o conceito de cidadania previsto no artigo 1º da LOAS nem
tem um sentido técnico-eleitoral, nem um sentido sócio-cultural. Seu uso
decorreu, provavelmente, de uma atecnia legislativa que evocou a palavra
“cidadão” num sentido metafórico. Assim, o referido artigo não pode ser
interpretado no sentido de exigir a cidadania brasileira como requisito para o
recebimento do benefício. O Decreto
6.214, de 26 de setembro de 2007, que autoriza a concessão do benefício assistencial
para brasileiros naturalizados, também não pode servir como empecilho para o
reconhecimento do direito aos estrangeiros residentes. Na verdade, o referido
decreto é tautológico, já que a Constituição Federal é muito clara ao
estabelecer que “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros
natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição” (art.
12, §2º). Assim, seria flagrantemente inconstitucional qualquer lei que
concedesse benefícios sociais apenas a brasileiros natos. Perceba que, se o
legislador brasileiro quiser, pode excluir os estrangeiros residentes do rol de
beneficiários do amparo assistencial, mas jamais poderia excluir os brasileiros
naturalizados. No caso, o legislador
pátrio incluiu expressamente os brasileiros naturalizados (e não poderia ser
diferente), mas não excluiu expressamente os estrangeiros residentes, devendo
prevalecer, no caso, a regra geral de igualdade, à falta de norma específica.
Poder-se-ia alegar que nenhum país do mundo daria direitos sociais a um
imigrante que ingressou ilegalmente no país. Não é bem assim. O mundo está
mudando. Até mesmo um país geralmente acusado de ser xenofóbico, como os
Estados Unidos da América, reconhece que os imigrantes ilegais não podem ser
discriminados arbitrariamente, pois também estão protegidos pela cláusula da
igualdade. No paradigmático caso Plyler v. Doe
(1982), a Suprema Corte norte-americana estabeleceu que “seja qual for o
seu estatuto ao abrigo da legislação de imigração, um estrangeiro é uma
‘pessoa’ em qualquer sentido comum do termo”, razão pela qual os
estados-membros não poderiam se negar a matricular filhos de imigrantes ilegais
nas escolas públicas. Os estrangeiros “mesmo os estrangeiros cuja presença
no país é ilegal, têm sido reconhecidos como ‘pessoas’ e, por isso, não podem
sofrer discriminação injusta”. Dito de outro modo: para os juízes
norte-americanos, até mesmo os estrangeiros que estão em situação irregular no
país podem ser considerados titulares de direitos de caráter social! Na Europa,
que é um continente onde a imigração é muito intensa, existem inúmeras
políticas públicas de caráter social extensíveis aos imigrantes. Em Portugal e
Espanha, por exemplo, os cuidados de saúde estão acessíveis a todos os
imigrantes, independentemente do seu estatuto legal, o que significa que também
os irregulares possuem esse direito. A grande maioria dos países reconhece que
os imigrantes regulares podem receber os cuidados preventivos e de emergência
fornecidos pelo poder público. De um modo geral, na Comunidade Européia, o
direito à educação é garantido indistintamente a nacionais e a estrangeiros. Em
alguns países, como a Suécia e Portugal, os imigrantes regulares também podem
ser favorecidos por medidas financeiras de proteção social. Como regra, os
imigrantes são titulares de inúmeros direitos fundamentais, embora, muitas
vezes, os serviços sociais disponibilizados aos imigrantes irregulares sejam
muito mais restritos. (Fonte: PNUD). Porém, mesmo que nenhum governo no mundo
reconhecesse direitos sociais aos estrangeiros, não creio que um erro de outros
países deveria pautar a política brasileira. A toda hora, criticamos a política
externa de países hegemônicos por não ser tão solidária. Por que devemos seguir
esse exemplo negativo? Em muitos momentos, ficamos indignados com o tratamento
discriminatório que os brasileiros recebem quando estão no exterior. Por que
devemos repetir as mesmas práticas que censuramos nos outros? O Brasil se
orgulha de ser um país hospitaleiro e sem preconceitos, mas parece que esse
orgulho não passa de um jogo de marketing. Afinal, por que os
antepassados de Mama Djalo, que vieram forçados em navios negreiros para o
Brasil, podiam ingressar no país e agora são deportados, como se fossem um
fardo indesejável? É preciso enfatizar novamente que Mama Djalo não deve ser
considerado, hoje, como um imigrante ilegal. Ele obteve, por decisão judicial,
o direito de permanecer no país para se tratar. Enquanto essa decisão estiver
em vigor, Mama Djalo não pode ser deportado e, por óbvio, para fins de proteção
jurídica, deve ser considerado como um “estrangeiro residente no país”. A
sua condição, portanto, é de residente, tanto que lhe foi reconhecido o direito
ao tratamento médico gratuito. Não é coerente reconhecer a ele o direito de ser
tratado no Brasil e não lhe conceder os meios mínimos para a sua sobrevivência. Mama Djalo não pode trabalhar. Mas
precisa se alimentar, pagar o aluguel e o transporte para o seu tratamento.
O direito constitucional brasileiro
previu o benefício assistencial exatamente para esse tipo de situação, onde a
pessoa está em condições de extrema vulnerabilidade física e financeira. Negar
a Mama Djalo esse direito só porque ele não nasceu em nosso país seria avalizar
um preconceito por nacionalidade incompatível com qualquer noção de dignidade
humana, especialmente quando não há qualquer norma constitucional ou legal que
autorize claramente esse tipo de discriminação. Seria uma atitude muito hipócrita proclamar, em belos discursos
jurídicos, o princípio da igualdade, o combate ao preconceito, a proibição de
discriminação e a idéia de que toda a vida humana possui o mesmo valor e, ao
mesmo tempo, contraditoriamente, adotar uma postura de falso patriotismo onde
os nossos nacionais valeriam mais do que os demais seres humanos.
Igualmente contraditório seria condenar o preconceito que os brasileiros sofrem
em outros países e, aqui, fazermos o mesmo com pessoas de outras
nacionalidades, especialmente de países ainda mais pobres que o nosso. Em qualquer país civilizado, os imigrantes
continuam sendo titulares dos direitos fundamentais básicos. Existem standards
mínimos de proteção jurídica que nenhum ser humano pode ser privado. Os
direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à justa proteção
jurídica são garantidos a todos os seres humanos indistintamente. Nossa Constituição, aliás, determina que
os “brasileiros e estrangeiros residentes no país” podem invocar os direitos
fundamentais em seu favor. O Pacto Internacional de San Jose da Costa
Rica, de forma ainda mais abrangente, inclui qualquer pessoa na sua esfera de
proteção (artigo 1º). E reconhece taxativamente que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de
ser ela nacional de determinado estado, mas sim do fato de ter como fundamento
os atributos da pessoa humana”. O Brasil, portanto, tem um dever de respeitar, proteger e promover os
direitos de “toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem
discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição
econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. Entre os
direitos fundamentais, certamente o direito à vida é um dos mais importantes,
até porque é pressuposto para o exercício de todos os demais. E o direito à
vida não tem apenas uma feição negativa, no sentido de que o poder público não
pode privar um ser humano do direito de viver. O dever de proteger a vida
humana também gera para o estado uma obrigação positiva, no sentido de adotar
medidas concretas capazes de possibilitar a fruição desse direito para aquelas
pessoas em situação de desvantagem sócio-econômica. Isso significa que o Estado
tem o dever de fornecer os serviços básicos para a proteção do chamado mínimo
vital. Existe, portanto, uma
obrigação estatal de garantir que todos os seres humanos tenham acesso às
necessidades básicas para a manutenção da vida. O fornecimento de medicamentos vitais para a sobrevivência de um
determinado paciente é uma decorrência desse dever; do mesmo modo, pode-se
mencionar o direito a uma renda mínima que lhe permita suprir as necessidades
básicas para a sobrevivência, que é justamente o que se pede no presente caso.
Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, antes mesmo de ter sido editada
a lei regulamentando a assistência social naquele país, reconheceu que o
direito à renda mínima para os necessitados é decorrência do princípio da
dignidade da pessoa humana previsto na Constituição. Isso porque o princípio da dignidade humana não exige apenas a garantia
da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos
materiais para uma existência digna, a própria existência da pessoa humana
ficaria sacrificada (BVerwGE 1, 159, 24/6/1954, conforme: SARLET, Ingo.
A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998, especialmente pp. 283/300). Em decisão posterior, a mesma
corte, invocando o princípio do estado social, decidiu que: “Com certeza a assistência social
aos necessitados faz parte dos deveres mais evidentes de um Estado social
(cf. BVerfGE 5, 85 [198]; 35, 202 [236]). Isto inclui necessariamente a ajuda
social ao cidadão que, em razão de deficiência física ou mental, tem seu
desenvolvimento pessoal e social impedido, sendo incapaz de prover seu próprio
sustento. A sociedade estatal deve, em todo caso, garantir-lhe as condições
mínimas para uma existência humanamente digna, e deve, além disso, esforçar-se
para, na medida do possível, incluí-lo na sociedade, estimular seu adequado
tratamento pela família ou por terceiro, bem como criar as necessárias
instituições de cuidado” (SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência
do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung,
2006, p. 828). É lógico que existem
múltiplas formas de o estado garantir o mínimo vital para a sobrevivência de um
indivíduo que esteja em condições de vulnerabilidade física e econômica, sendo
o benefício social de prestação continuada apenas uma delas. Em linha
de princípio, em deferência à separação de poderes, deve-se reconhecer que cabe
ao governo federal estabelecer o melhor caminho para promover a dignidade
humana, garantir o direito à vida e possibilitar a sobrevivência de pessoas
necessitadas que estão sujeitas à jurisdição brasileira. Porém, no presente
caso, o INSS, que é o órgão responsável pela Assistência Social, não apresentou
qualquer medida alternativa que pudesse ajudar Mama Djalo, abandonando-o à
própria sorte. Desse modo, à falta de opção melhor, a concessão do benefício
assistencial mostra-se adequada e necessária para os fins a que se propõe. Por
fim, é preciso tecer algumas considerações sobre os argumentos do INSS
envolvendo os aspectos econômicos do entendimento favorável à concessão do
benefício assistencial para estrangeiros. Não há dúvida de que seria uma
atitude inconseqüente se assumirmos um compromisso de financiar o combate a
todos os males do planeta sem que tenhamos condições econômicas para tanto.
Nesse aspecto, temos que ser realistas. O benefício assistencial gera um custo,
e esse custo é distribuído por toda a sociedade brasileira. Por óbvio, os
recursos são escassos e, por isso, a sua distribuição deve ser criteriosa e
seletiva. Não seria razoável conceder o benefício a pessoas que sequer moram no
Brasil ou então que estão aqui meramente de passagem ou então que estão apenas
querendo se aproveitar da nossa boa vontade, pois certamente não foi esse o
objetivo do legislador brasileiro. Mas esse não é o caso de Mama Djalo. Ele já está inserido na sociedade há mais
de dez anos. Boa parte de sua vida foi vivida no Brasil. Ele trabalhou, ainda
que informalmente, pagou impostos (tem até CPF – anexo 2) e criou laços de
amizade. Com toda certeza, ele não pode ser considerado como um aproveitador
que veio ao Brasil apenas para receber tratamento médico gratuito e ainda
receber dinheiro do governo federal. O argumento do impacto financeiro
desaparece por completo diante desse fato. Não parece factível que o sistema
assistencial brasileiro entrará em colapso em virtude do pagamento do benefício
assistencial mensal, no valor de um salário mínimo, para Mama Djalo. É provável
que o custo que o estado brasileiro terá com o pagamento desse benefício nesses
últimos momentos de vida que lhe restam será inferior ao que teria com a sua
deportação, já que só o custo da passagem aérea de Fortaleza para Guiné-Bissau
pode chegar a cinco mil reais (via TAP),
que é o suficiente para pagar quase um ano de benefício assistencial. Se
acrescentarmos a isso os demais gastos que o processo de deportação acarreta,
então, sob o ponto de vista financeiro, talvez seja melhor mantê-lo aqui. E
mesmo que se raciocine com a extensão do benefício para estrangeiros em
situação semelhante, o que certamente resultaria em um impacto econômico maior,
ainda assim não restou provado nos autos qual seria a conseqüência econômica
daí resultante. A meu ver, o temor de um impacto excessivo é infundado. No
Brasil, residem cerca de 500 mil estrangeiros, conforme dados do IBGE referentes ao ano 2000. A quantidade de
estrangeiros residentes que estão com as condições financeiras e de saúde
semelhantes à de Mama Djalo é irrisória. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD,
de 1999, a
imensa maioria dos estrangeiros residentes (92%) recebe mais de cinco salários
mínimos. Uma quantidade muito pequena (3,3%) ganha menos de meio salário
mínimo. Certamente, os que ganham menos de um quarto de salário mínimo e ainda
estão incapacitados para o trabalho, representam uma população ainda mais
insignificante, já que, entre a população brasileira, a quantidade pessoas que
fazem jus ao benefício assistencial não chega a 1,5% do total, incluídos aqui
os idosos. Por isso, não vejo aí qualquer possibilidade de exaustão
orçamentária caso se interprete a Constituição e a Lei Orgânica da Assistência
Social no sentido de que os
estrangeiros residentes não podem ser excluídos, tão somente por sua
nacionalidade, do rol de beneficiários do amparo social. O Brasil, cada
vez mais, eleva os gastos com ajuda humanitária para países mais pobres, numa
elogiável atitude de solidariedade mundial. Seria um contra-senso enviar
milhões de reais para o exterior, para ajudar pessoas necessitadas em outros
países, e não ajudar os estrangeiros necessitados que residem no país. Se o
Brasil pretende ser um país com alguma liderança no novo cenário mundial, tem
que começar tendo uma atitude moral coerente e sincera, onde a preocupação com
a miséria humana em todos os lugares do planeta não é apenas da boca pra fora.
O receio de que a concessão de benefícios assistenciais para estrangeiros
residentes gere um aumento do fluxo de imigrantes ilegais também é infundado. O
número de estrangeiros que buscam o Brasil para aqui fixar residência tem
diminuído e não aumentado. Esse número já chegou a mais de 700 mil no início
dos anos noventa e, no último censo do IBGE, realizado em 2000, girava em torno
de 500 mil. Além disso, é muito improvável que uma pessoa que esteja em outro
país, distante do Brasil, em uma situação de miséria financeira e com a saúde
debilitada, tenha condições de arcar com todos os custos e riscos de uma viagem
onerosa para vir ao Brasil receber um salário mínimo por mês. Em geral, as
pessoas optam por morar em outro país para fugir de conflitos políticos ou
então para buscar novas oportunidades de emprego e não por conta de possíveis
benefícios sociais que possam lá receber. O Relatório de Desenvolvimento Humano
do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, relativo ao ano de
2009, tratou precisamente da situação dos imigrantes e do impacto da mobilidade
humano no desenvolvimento dos países. No referido estudo, foi demonstrado que,
ao contrário do que a maioria pensa, a imigração traz diversos benefícios não
apenas para o imigrante, mas também para o país de destino. A mobilidade dos
seres humanos entre os países do mundo é um fator que estimula o
desenvolvimento humano. Por isso, não devemos encarar o estrangeiro como um
inimigo, nem como alguém que não é bem-vindo, que gera encargos sociais ou
então que traz insegurança e violência. A possibilidade de se deslocar, mudar
de local de residência e tentar melhorar de vida em outro lugar deve ser
considerada como uma componente fundamental da liberdade humana. Hoje, é fato,
o mundo está se globalizando. As fronteiras estão desaparecendo. A economia é
uma só. A ética é uma só ou, pelo menos, almeja ser uma só. O mundo caminha
para a construção de um projeto ético comum. Se a idéia de um código moral
uniforme para todos os habitantes do planeta é uma utopia irrealizável e, em
certo sentido, indesejável (por ser demasiadamente pretensiosa e arrogante),
percebe-se cada vez mais a necessidade de se desenvolver um modelo de regulamentação
internacional que possa, pelo menos, harmonizar a pluralidade de códigos morais
existentes, rumo a uma convivência pacífica entre todos os povos, onde cada ser
humano possa ser, de fato e de direito, tratado como igualmente merecedor de
respeito e consideração, independentemente de qualquer qualificativo. Mama
Djalo é um africano, pobre, doente e sem familiares para ajudá-lo. Ele veio ao
Brasil de boa vontade com o intuito de melhorar seu bem-estar e fugir das
péssimas condições de vida em seu país de origem. Talvez para a maioria de nós
seja difícil sentir empatia por alguém que vem de um local que nem sequer
sabemos indicar no mapa. Mas a
obrigação de qualquer ser humano é ajudar outro ser humano que esteja em necessidade. Essa
obrigação, para nós que somos brasileiros, não é uma mera obrigação moral.
Trata-se, na verdade, de uma obrigação constitucional, que está claramente
prevista no artigo 3º da Constituição Federal: constitui objetivo da República
Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem”. Em
razão disso, por obrigação constitucional, deve ser mantida a sentença e
reconhecido o direito de Mama Djalo receber o benefício assistencial enquanto
permanecer no Brasil. Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS.
Fixo os honorários de sucumbência em 10% sobre o valor atribuído à causa.
Fortaleza, 19 de abril de 2010. George Marmelstein Lima. Juiz
Federal no Ceará.”
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Sobre a autora:
Glaé Schaeffer
Bacharel em Letras e
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo/RS.
Pós-Graduada em Direito Previdenciário pela Universidade de Passo Fundo/RS, parte
integrante da equipe Accadrolli Advocacia Previdenciária. Colaboradora do blog
"aposentadoriadoinss.blogspot.com.br".